A chuva e as lembranças de uma mulher
Chovia aqui na minha aldeia quando ela chegou. Apareceu como os seres que são mistérios, silenciosa e acalentando os próprios sonhos, firmando o olhar para o infinito buscando respostas.
Era uma chuva fina negando a estação do sol e do sal .
Reconhecia aquela mulher.
Ela andava na fina chuva como se estivesse lavando as suas dúvidas. Parava pensativa e seguia seu caminho.
Levando consigo a chuva. Os seus seus questionamentos..
Parou abrigando-se do que já lhe incomodava, porque precisava descansar.
Aproximei-me e a reconheci!
Lembro-me tanto dela...
Lembro-me muito. Há tempos atrás a conheci. Tinha o sorriso mais encantador que poderia existir e o brilho nos olhos como só as crianças possuem quando descobrem a vida em sua plenitude ao receber um mimo.
Quando a conheci acalentava nos braços toda a esperança encantada guardando na alma os sentimentos que fazem o coração inventar asas para, sonhando, poder voar.
Por que agora estava tão triste? Que solidão hipnotizava seus pensamentos que tanto a desencantou?
Tive vontade de perguntar .
E a vida?
Ah! A vida continuava o seu percurso... amanhecia como o dia falando de transformações; anoitecia como a noite, abrigava os desencantos, as alegrias e as histórias dos encontros e desencontros, das perguntas sem respostas.
A vida? Continuava a sua missão.
Relembro-me dela, quando a conheci.
A tarde já estava preparando a sua despedida diária para o anoitecer , vestindo-se de por do sol para saudar a noite.
Mesmo acinzentado o céu permanecia bonito lançando um desafio para os limites humanos para um mundo icariano em que o “nunca” não só pertence ao habitat de Peter Pan mas pode ter outra simbologia... alimento dos sonhos que precisam ser reais.
Ah! Aquela mulher.
Sempre tinha as mãos sob a forma de conchas agradecendo e acreditando que a palavra era a possibilidade maior de acreditar na verdade viável.
Carregava a juventude com a vitalidade dos seres que aguardam o momento de abrir janelas para o horizonte vislumbrando frestas iluminadas que dão sentido maior à vida.
Quando ela chegou na aldeia a chuva também era fina e a sua essência embalava as querências pedindo respostas às suas perguntas astuciosas.
Esta mulher que está triste e a reencontro chegou com a chuva fina.
Entardecia... o dia refletia em seu coração encharcado de agonias e perturbando a sua louca porém controlada vontade de arrumar na gaveta etérea de sua vida as inúmeras formas ou máscaras dissimuladas( para não violar as suas verdades), os gritos existenciais que a sufocavam (tanto torpor, tantas tristezas) e a deixavam em solidão.
Por que era tão indefesa em sua imensa dor?
Que couraça a abrigava e a guiava para os seus porões anímicos - fiéis e silenciosos confidentes - se vivia todas as possibilidades exsistenciais que dilaceravam a sua alma pela dor imposta pelo destinou ou talvez por um outro “eu” que a escolheu?
Tive a impressão que ela chorava pela vida macerada que os desacertos e as angústias provocados pelas mentiras e desrespeitos, pelas ações torpes a transformaram no próprio esquecimento, andando ao contrário, na contramão da vida em total ausência.
Revejo esta mulher no mesmo momento agora.
Parada, diante da chuva fina com o olhar tão distante que me enterneceu. O que olhava ou buscava encontrar?
Parada, aguardava que a chuva finalizasse seu ciclo abraçando a sua vastidão de sentimentos como se estivesse amparando a sua fraqueza e criando forças para seguir...
Era uma tarde fria, quase anoitecendo.
Chuva fina , duas mulheres.
Uma observando, encantada com o entardecer, sentindo o bonito ritual de deuses e musas (inspiração de poetas, encantados e sonhadores) impossível de ser vivenciado por simples mortais insistindo em continuar a viver, sonhar, ser. Outra , pensando na mudança que mexeu com seu coração carregando nos braços, com muito cuidado, a desesperança dos seres que um dia acreditaram na possibilidade de ser feliz, que planejava continuar a viver, a crer, a ser.
Chovia aqui na minha aldeia.
Ana Virgínia Santiago é jornalista, poeta e cronista no sul da Bahia.